segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

ESPÍRITO ZOMBETEIRO





Recentemente, uma colega acessou meu blog e comentou que as crônicas ali postadas pareciam não terem sido escritas por mim. Segundo ela, os textos eram tão diferentes do meu modo de ser que era como se eu tivesse outra personalidade. Minha cara, você matou a charada! De fato, não sou o autor de nada daquilo. Todas as crônicas, acredite, foram psicografadas. Sim, vez por outra, uma alma de outro mundo, um espírito zombeteiro, invade meu corpo e o usa para escrever todas aquelas bobagens.
Gostaria de deixar bem claro que, diferentemente do que aparece nas crônicas, sou um homem muito sério, extremamente religioso e temente a Deus. Não torço por nenhum time de futebol e nem sei quais são as cores da camisa do Flamengo. Nunca ouvi falar nessa tal de Scarlett Johansson e só tenho olhos para a minha linda esposinha, de quem jamais me divorciaria. Amo minha mãe e adoro todos os meus colegas de trabalho e vizinhos, especialmente o general Waldick, do 505. (Na verdade, nem existe um quinto andar no meu edifício. Por uma incrível falha de engenharia, na construção do prédio esqueceram-se do quinto andar e colocaram o sexto imediatamente acima do quarto.) Não vejo a menor graça nos filmes do Woody Allen e só assisto a documentários científicos. Continuo acreditando que a psicanálise, principalmente a lacaniana, é a solução para tudo e para todos, e, apesar de a minha terapia ter sido muito bem-sucedida, ainda vou às sessões oito vezes por semana. Por fim, nunca tive Facebook e... odeio escrever!
O problema é que, de uns tempos para cá, o espírito não tem se contentado mais em apenas me fazer escrever as crônicas. Ele agora tem também assumido o controle sobre meu corpo e minha mente nas mais diversas situações. Assim, meu querido amigo, não fique magoado comigo por eu tê-lo chamado de “careca arrogante, estúpido e sem escrúpulos” e, em seguida, tentado estrangulá-lo, até ser contido por vários de nossos colegas. Quando fiz isso, eu não era eu. O que aconteceu foi que o espírito tinha se apossado de mim.
Novamente eu não era eu quando, vestido com uma camisa rubro-negra, entrei no meio da torcida do Vasco, em São Januário, gritando um monte de impropérios e fazendo gestos obscenos. Era tão evidente que eu estava fora de mim que os vascaínos nem se incomodaram comigo e ficaram totalmente indiferentes ao meu comportamento. (Portanto, foi inteiramente desnecessária e despropositada a intervenção dos 117 policiais militares, que, me agarrando pelos braços e pernas, muito gentilmente me convidaram a me retirar.)
Eu também estava sob o domínio do espírito maligno quando, num bar em Fortaleza, após meia dúzia de chopes, subi na mesa e comecei a fazer strip-tease, enquanto cantava os maiores sucessos de Carmen Miranda. O mesmo se deu no episódio em que, no meio de uma aula de psicopatologia que eu ministrava, para espanto de toda a classe, pulei para cima de uma voluptuosa aluna sentada na primeira fileira, tendo caído dentro de seu muito generoso decote. (Agora, depois que voltei da suspensão, só permitem que eu ministre aula usando uma corrente que prende minha perna à parede, impedindo, assim, maiores saltos na minha imaginação.)
Bom, acredito que agora já esteja esclarecida a minha total inocência nesses lamentáveis fatos, dos quais, aliás, não me lembro de nada. Depois de quinze anos de análise, não tenho mais nenhum problema em assumir a responsabilidade pelos meus atos – desde que, é claro, meu corpo não esteja possuído por um espírito zombeteiro.

05/12/2011

terça-feira, 15 de novembro de 2011

MEU GOSTO PELO ENSINO

 



Vários amigos – especialmente aqueles dois ou três que me acham um bom professor - me perguntam quando começou meu gosto pelo ensino. Na verdade, diferentemente do que muitos pensam, não foi durante o meu primeiro ano de residência médica, quando o professor Paulo Pavão me convidou para ministrar aulas de psicopatologia para os internos da psiquiatria da UERJ. Não, minha vontade de ensinar começou bem mais precocemente.
Começou quando eu tinha uns dezesseis anos e ainda cursava o segundo grau. Na época, eu era apaixonado por uma colega de turma chamada Deise. Eu a achava lindíssima e muito parecida com a Brooke Shields, por quem eu também era apaixonado e que aparecia seminua no filme A lagoa azul, grande sucesso entre os adolescentes de então. Volta e meia Deise, toda sedutora, aproximava-se de mim e dizia “me explica”, pedindo para eu lhe tirar as dúvidas das matérias do colégio. O modo como ela falava “me explica” era irresistível! Quem era eu para dizer não à Brooke Shields?! Claro que o meu raciocínio era o seguinte: eu daria a ela conhecimento e, em troca, receberia... sexo. Exatamente nesse momento, nasceu meu gosto pelo ensino. Pensando bem, na verdade o meu gosto pelo ensino era para ter morrido ali, pois não ganhei um beijinho sequer. Em contrapartida, burrinha que só ela, Deise também não conseguia entender quase nada do que eu lhe explicava. Contudo, ela acabou passando de ano, pois, além de ter um grande talento para a sedução, ela também era muito boa em colar nas provas. Colava não só de mim, mas também de outros rapazes, tão ingênuos quanto eu.
Revendo as fotos do colégio, percebo agora que Deise não era tão bonita e não se parecia em nada com a Brooke Shields, a qual, por sua vez, não chega aos pés da Scarlett Johansson, minha musa atual. Mas meus olhos adolescentes viam toda a beleza do mundo e toda a esperança de felicidade em Deise – e na Brooke Shields também.
Por onde andará Deise? Casou-se com um milionário? Seguiu seu talento natural e virou garota de programa? Desistiu da vida e se mudou para Portugal? Não faço a menor ideia. Eu é que, pelo menos metaforicamente, me vejo no mesmo lugar.
Sim, no mesmo lugar, pois, na carreira acadêmica, continuo explicando as coisas, na esperança de receber das outras pessoas algo valioso em troca. Não mais sexo, mas, agora, atenção e afeto. Em que outra situação na vida que não quando estou fazendo uma palestra ou ministrando uma aula tantas pessoas ficariam tanto tempo ouvindo o que tenho a dizer? Minha ex-analista, reconheço, me escutou por quinze anos... mas somente porque eu pagava uma fortuna a ela.
Encontro-me no mesmo lugar também porque continuo a me apaixonar a torto e a direito. Um pouquinho de atenção ou um simples sorriso já me fazem ver toda a beleza do mundo e toda a esperança de felicidade no outro. Pois é, já não tenho mais muito cabelo, preciso de óculos para ler e sinto dores na coluna lombar, no entanto continuo a ter dezesseis anos.
15/11/2011



domingo, 13 de novembro de 2011

MINHA QUEDA POR "UM CORPO QUE CAI"





Ao longo de minha vida, apaixonei-me por diversas mulheres – entre elas, a Scarlett Johansson -, por um livro – Dom Casmurro, de Machado de Assis -, por uma canção – Chovendo na roseira, de Tom Jobim -, por um time de futebol – nem preciso dizer qual – e por um filme.
Um corpo que cai (Vertigo, no original) é o meu filme favorito. Para começo de conversa, é dirigido por Alfred Hitchcock, meu cineasta preferido. Mas não o considero apenas o melhor filme do velho Hitch. Um corpo que cai, para mim, é o melhor filme de todos os tempos.
Assistir a Um corpo que cai pela primeira vez foi um momento mágico, inesquecível. Isso foi em 1984 e tinha eu uns dezenove anos. Já era fã do Hitchcock e já tinha assistido a Psicose, Intriga internacional, Os pássaros, Janela Indiscreta, entre muitos outros. Não imaginava, então, que o mestre do suspense pudesse ter feito algo ainda melhor. Mas fez. O filme estava passando no antigo cinema Veneza, em Botafogo, que não existe mais. Fui com meu amigo de adolescência Heraldo, meu amigo até hoje. Lembro-me de que saí do cinema extasiado, inebriado, como se estivesse ainda dentro de um sonho. Preferi retornar para casa a pé, embora tivesse que andar uma boa distância – e ainda atravessar um túnel -, para que a transição de volta para o árido e cruel mundo real pudesse ser mais lenta e, assim, menos brutal.
Quando Um corpo que cai foi lançado, em 1958, não fez muito sucesso, nem de crítica nem de bilheteria. Todavia, décadas depois, é figurinha fácil nas listas dos dez maiores filmes de todos os tempos. O que tem de tão especial nesse filme? Não sei explicar bem, para mim é algo muito pessoal. Não importa quantas vezes eu o tenha visto - pelo menos uma dúzia até agora -, sempre fico emocionado quando o revejo. Recentemente, eu estava participando de uma mesa-redonda, sobre cinema e saúde mental, quando uma colega, em sua apresentação, exibiu em vídeo a cena do suposto suicídio da suposta Madeleine (Kim Novak), supostamente saltando do alto da torre na antiga aldeia espanhola. Ainda bem que as luzes estavam apagadas e ninguém percebeu meus olhos marejados – eu suponho.
Mais do que um filme de suspense ou de mistério, Um corpo que cai é uma história de amor. Foi impossível para mim – e, penso eu, para qualquer espectador – não me apaixonar por Kim Novak e não me identificar com o voyeurismo de Scottie (James Stewart). Claro que o amor de Scottie por Madeleine é patológico, doentio e triste. Ele se apaixona por alguém que não existe, Madeleine, e se recusa a gostar da mulher real, Judy (também Kim Novak). E, além disso, tenta transformar a mulher real na idealizada, dando uma de Pigmalião, que, na mitologia grega, esculpiu a mulher perfeita e ainda se casou com ela.
A mensagem pessimista é que talvez toda paixão amorosa seja assim, um estado psicótico em que projetamos no outro somente coisas boas. Depois nos casamos com o ser amado e logo descobrimos que nada daquilo era real. Será que Pigmalião pediu a Afrodite que transformasse Galateia de novo em estátua, porque esta não parava de falar? Será que Pigmalião e Galateia acabaram se divorciando? Será que eu enjoaria da Scarlett Johansson?
A mensagem otimista é que Kim Novak era linda, Hitchcock era um gênio e Um corpo que cai será sempre um grande filme!
13/11/2011

sábado, 5 de novembro de 2011

MEUS SEGREDOS






Até recentemente, havia quatro coisas terríveis sobre mim, que eu não contava para ninguém. No entanto, agora que minha terceira ex-esposa, dando uma de Mia Farrow, acaba de publicar um livro em que revela todos os meus segredos mais íntimos e inconfessáveis, não tenho mais nada a esconder.
Um desses segredos é que tenho “Júnior” no nome. Nos últimos anos, tento tentado escondê-lo, assinando meus escritos simplesmente como “Elie Cheniaux”. Porém volta e meia ele reaparece impresso ao lado do meu nome, sem o meu consentimento, em um crachá de congresso ou no programa de algum evento científico, por exemplo. Aí reclamo, dou chilique, ameaço não aparecer para a minha apresentação, mas com frequência é tarde demais para se fazer a correção. Já aconteceu de alguém que me conhecia de nome, como “Elie Cheniaux”, vendo o “Júnior”, achar que eu não era eu, mas sim o filho de mim mesmo. Por que implico com o meu “Júnior”? Não deveria, pois com este nome ficou conhecido o Leovegildo Lins Gama Júnior, um dos maiores jogadores da História do Flamengo e aquele que mais vezes vestiu o Manto Sagrado. Além disso, é assim que minha doce e querida mãezinha me chama... Ah! Agora descobri por que não gosto do “Júnior”!
Outra coisa que sempre tentei omitir é que nasci em Niterói. Isto só aconteceu porque minha doce e querida mãezinha, que já morava com meu pai aqui na cidade mais linda do mundo – o Rio de Janeiro, é claro! –, cismou de me parir do outro lado da Baía de Guanabara, privando-me, assim, do orgulho de poder dizer que sou carioca. Fui para Niterói só para nascer, pois nunca morei num lugar diferente de Copacabana. Mas não vou ser totalmente ingrato com a minha cidade natal, pela qual sempre tive um grande carinho. Foi lá, especialmente na minha infância, que convivi com a minha avó materna, a pessoa que foi mais maternal comigo em toda a minha vida, e com o meu primo, o irmão que nunca tive. Além disso, Niterói tem uma belíssima vista – para o Rio, é claro!
 Outro segredo guardado a sete chaves é que sou tímido. ‘Tá bom, este segredo não é muito secreto, pois todas as pessoas que me conhecem e a torcida do Flamengo inteira sabem disso. A princípio, eu não sabia que era tímido, mas, com tanta gente me dizendo, passei a suspeitar que fosse verdade. E, mesmo depois de me convencer desse fato, eu continuava a negar, pois tinha vergonha da minha timidez. Mas, ao contrário do que falam, não se trata de um defeito; por sinal, é mais uma entre as 117 características que compartilho com o Chico Buarque. Sim, como todos sabem, temos uma enormidade de coisas em comum: moramos na zona sul do Rio, gostamos de futebol, torcemos por times cujas primeiras letras são F e L, amamos escrever, entre muitas outras – não vou citar todas para não cansá-los. Vivem me confundindo com ele na rua e ainda me pedem autógrafo!
Por fim, eu nunca havia contado a ninguém que não sabia dar nó em gravata. Sem dúvida uma vergonha para um homem com mais de quarenta anos na cara! Mas como, se há fotos em que eu apareço engravatado?! Montagem? Não, era meu pai quem dava o nó para mim. Agora que ele não está mais aqui, tive que me virar sozinho e, na semana passada, finalmente aprendi. Quem me ensinou foi meu amigo de adolescência e eterno amigo Fernando Augusto - boa gente, embora seja tricolor. Por algum motivo, ele me pediu que revelasse o nome dele. Ele quer passar para a História como o homem que ensinou o Elie Cheniaux a dar nó em gravata! Isso faz algum sentido? Será que imagina que milhões de pessoas vão ler esta crônica no blog ou vão comprar o meu livro e, assim, ele vai ficar mundialmente famoso?! Bom, quem sabe? Mas o importante é que estou me sentindo radiante! Agora consigo fazer algo que, em função de minha total falta de coordenação motora, parecia impossível para mim. Se eu fosse psicanalista – e, por acaso, eu sou -, diria que a gravata é um símbolo fálico e que estou me sentindo muito mais potente. Pode ser que Freud esteja certo. Agora você não me escapa, Scarlett Johansson! Imaginem só como vou me sentir quanto aprender a amarrar os sapatos!


02/11/2011

terça-feira, 18 de outubro de 2011

TÚMULO DO AMOR

 




Através dos tempos, tivemos os inquisidores da Idade Média, os nazistas, os stalinistas e os torturadores do regime militar brasileiro, entre muitos outros de não muita saudosa memória. Mas, em termos de crueldade, ninguém supera as ex-esposas.
Infelizmente meu inexorável destino era mesmo ser vítima da crueldade delas. Afinal, enquanto grande parte das pessoas sonha em se casar um dia, desde criança o meu desejo sempre foi me divorciar. Tendo assistido de camarote ao desastroso casamento dos meus pais, separados apenas pela morte, o divórcio tornou-se uma obsessão para mim. Eu precisava ir além, realizar o que meus pais jamais conseguiram. Jurei para mim mesmo que me divorciaria pelo menos uma vez na vida, ainda que, para isso, fosse preciso antes me casar!
Se foi só por isso que me separei de minha terceira esposa? Não, claro que não. Quem me dera! Você quer que eu liste os 117 motivos em ordem alfabética, cronológica ou de gravidade? ‘Tá bom, não vou falar em todos, contarei apenas dois ou três fatos. Por exemplo, eu esperava ouvir dela frases como “eu te amo”, “estou com saudades” ou, pelo menos, “o jantar está na mesa”. Até ouvi essas coisas no primeiro ano, mas depois ela só me dizia “você não faz nada direito!” - e ainda falava que eu não deveria encarar essa observação como uma crítica. Além disso, parecia que o que dava mais prazer a ela na vida era me irritar. A princípio, tentava fazer isso xingando minha mãe. Mas, como eu fazia coro com os xingamentos, ela então apelava, falando mal do Flamengo. Aí não dava para aguentar!
O fim mesmo do nosso casamento foi quando, no auge da raiva, ela me disse aos berros: “Você não é o Woody Allen!”. Até hoje não entendi bem o que ela quis dizer com isto, mas, mesmo assim, me senti profundamente ofendido. Só sei que havia muito tempo que ela não achava mais graça nas minhas piadas. Assim, confrontado com a minha própria mediocridade pela pessoa que, supostamente, deveria me amar e admirar, percebi que estava tudo acabado. Quando, num relacionamento, o humor vai embora, o amor segue o mesmo caminho. Ou vice-versa.
Mas não vou ficar aqui difamando a mãe do meu filho. Ela é, sem dúvida, uma mulher de grandes qualidades. Por exemplo, adora estudar. Entrou para diversas faculdades: física, direito, medicina, história, teologia e, novamente, direito. (Pois é, eu não faço nada direito, mas, volta e meia, ela faz...) Terminou algumas, outras não, mas está sempre estudando. Como exigir que uma mulher que estuda tanto – e que sabe tão bem o que quer na vida – ainda arrume tempo para trabalhar?!
Mas o pior ela me reservou para após o fim do casamento, ao publicar um livro em que conta todas as intimidades de nossa vida em comum, revelando ao mundo as minhas piores manhas, manias e esquisitices. (A Scarlett Johansson deve ter lido e ficado chocada. Só isto explicaria o fato de ela não ter respondido nenhuma das 117 cartas de amor que enviei para ela.)
Pois é, como disse Nietzsche, o casamento é o túmulo do amor. E se você, meu amigo, não quer ter uma ex-esposa, nunca se separe ou, melhor ainda, nunca se case. Contrair matrimônio é contrair a pior das doenças, que não se cura nem com o divórcio. Não dizem que ex-mulher é para sempre?

18/10/2011

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

DEUS EXISTE!





“Fotos de Scarlett Johansson nua caem na internet” foi a manchete que vi no site de notícias. Meu primeiro pensamento foi: “Deus existe!”. Vendo as fotos e tomado por fortes emoções, outra ideia me veio à mente: “Deus existe mesmo!!!”. De fato, pensei ainda, só Deus seria capaz de criar algo assim tão maravilhoso.
Todavia, depois que a poeira – assim como outras coisas - já tinha baixado, voltei ao meu racionalismo habitual e reassumi meu ateísmo fervoroso e praticante. Afinal, se existe uma Scarlett Johansson, existem no mundo milhões como a Angela Merkel, chanceler da Alemanha, sutilmente classificada pelo Berlusconi como “bunduda incomível”. Se existiu um Tom Jobim, existem milhões de duplas sertanejas. Se existiu um Mahatma Ghandi, existem milhões como o Berlusconi ou mesmo o general Waldick, meu adorável vizinho do 505. E por aí vai... Conclusão, se existe um criador, ele não é tão eficiente assim. De vez em quando acerta, mas, na grande maioria das vezes, só faz burradas. O mínimo que se poderia esperar de Deus seria a perfeição.
Claro que, se eu estivesse vendo neste momento a Scarlett aqui em casa, peladona e sorrindo para mim, aí sim teria uma prova inequívoca da existência de Deus. Ou, mais provavelmente, uma prova inequívoca da perda da minha sanidade mental. Mas, como nem o milagre nem a alucinação ocorreram, continuo um incrédulo.
Mas a minha fé no ateísmo não me impede de respeitar as religiões e, principalmente, os sentimentos religiosos. Assim, fiquei entusiasmado em participar ontem da 4ª Caminhada em defesa da liberdade religiosa, na praia de Copacabana. Não havia como eu deixar de apoiar um movimento que prega a tolerância mútua entre as várias religiões, as quais através dos tempos serviram – e ainda servem - como justificativa para tantas guerras. Senti-me totalmente identificado com a ideia de liberdade religiosa, pois, para mim, isto deveria incluir não só a possibilidade de cada um escolher a religião que quisesse, mas também o direito de escolher não ter nenhuma religião e não acreditar em Deus - e não ser discriminado por isso. Que ingenuidade a minha!
Cheguei lá na caminhada, todo animado, vestindo uma camiseta com a inscrição “Ateu, graças a Deus”. Mas parece que fui mal compreendido. Depois de inúmeros olhares ameaçadores e insultos à minha querida mãezinha, tive que sair correndo para não ser vítima do primeiro linchamento ecumênico da História. Contudo, apesar do susto, pude ver um lado positivo nesse episódio: pelo menos ele me fez recordar a minha doce e saudosa infância, quando meus pais momentaneamente paravam de brigar um com o outro e se uniam contra mim.


19/09/2011

sábado, 17 de setembro de 2011

AUTOESTIMA





Após uma argumentação minha a respeito de uma questão científica, recebo esta afetuosa réplica de um colega:

... Sou hoje, certamente, o maior divulgador dos ensinamentos do professor Fulano de Tal... Parece que você não entendeu nada do que disse Sicrano, se é que o leu... O que eu disse, e reafirmo, é que o trabalho primoroso de Sicrano tem hoje valor estatístico, o resto é resto; a minha prática de mais de quarenta anos o comprova...

Woody Allen diz que no show business é cobra comendo cobra ou, pior, cobra não retornando os telefonemas de outra cobra. Parafraseando meu ídolo, eu diria que na carreira acadêmica é cobra comendo cobra ou, pior, cobra não respondendo as mensagens eletrônicas de outra cobra. Depois da resposta do meu adorável colega, senti saudade do tempo em que as minhas mensagens eram simplesmente ignoradas.
Só quarenta anos de experiência psiquiátrica?! Pensei que fosse muito mais tempo, pelo menos o triplo! Mas, sinceramente, sinto uma enorme inveja do meu querido colega. Inveja, sim, juro por Deus! Ele ministra aulas sobre assuntos dos quais nada entende, tem ideias mais anacrônicas do que concurso de miss Brasil, fala descarrilhamento em vez de descarrilamento e usa mim para conjugar verbos – “para mim falar”, “para mim fazer” etc. No entanto, ele se acha o máximo... Como eu queria ter essa autoestima!
Se eu fosse psicanalista – e, por acaso, eu sou -, diria que inconscientemente ele sabe o quanto é medíocre e que sua arrogância é o resultado de um mecanismo de defesa que o impede de se ver como é. Se eu fosse psicopatólogo – e, por acaso... deixa pra lá -, diria que se trata de um delírio compensatório numa psicose enxertada. Mas o que importa? Essa defesa está funcionando para ele, que realmente acredita ser o príncipe herdeiro de um grande mestre em nossa área. A autoilusão é uma benção, a autoilusão é a chave para a felicidade!
O que me angustia é que sou exatamente o contrário. Todos dizem que sou lindo, brilhante e maravilhoso, mas não consigo acreditar. Bem, para ser sincero, ninguém fala nada disso sobre mim, mas, se falassem, eu também não acreditaria. Adoro receber elogios e, quando passo mais de uma semana sem ouvir algo positivo ao meu respeito, entro em crise de abstinência e penso em suicídio. Os elogios me fazem bem, mas jamais acredito neles. Sempre penso que a outra pessoa está apenas querendo ser gentil e simpática ou então exagerando. Porém, ruim com os elogios, muito pior sem eles...
Depois que três namoradas me disseram que eu tinha mãos bonitas, até cheguei a considerar, num primeiro momento, que pudesse ser verdade. Mas aí pensei: “Só elogiam as minhas mãos! Então o resto do meu corpo é para jogar no lixo?!”. Depois fiquei imaginando que pudesse ser uma figura de linguagem: ter mãos bonitas significaria escrever bem. Mas claro que isso não corresponde à realidade. Escrever bem é o que faziam ou fazem Machado, Nelson Rodrigues, Vinicius, Drummond, Chico Buarque, Ruy Castro e Sarney – este não, me enganei, apaguem.
Assim, não consigo entender o que você viu em mim. Melhor pedir para o seu psiquiatra aumentar a dose do antipsicótico. Ou então não. Continue a dizer coisas bonitas no meu ouvido. Prometo que um dia vou acreditar.
17/09/2011



segunda-feira, 12 de setembro de 2011

ORIENTAÇÃO DE MESTRADO





Recebi de uma aluna a seguinte mensagem:

Elie, por favor, não me olhe mais com essa cara de "terminou de escrever o artigo?"!

Respondi:

Cara Luciana,
Se eu fosse psicopatólogo – e, por acaso, eu sou -, diria que você está apresentando uma ideia deliroide de autorreferência, de base interpretativa.
Se eu fosse psicanalista – e, por acaso, eu sou -, diria que você está projetando em mim seu sentimento de culpa.
Se eu fosse seu amigo – e, por acaso, eu sou -, diria que compreendo, que você pode ficar tranquila e não se preocupar.
E, se eu fosse seu orientador – e eu também sou -, diria para você parar de frescura e escrever logo essa p...!!!

 12/09/2011


segunda-feira, 15 de agosto de 2011

CANAL ADULTO





Chegou a fatura da operadora de TV por assinatura, e nela havia a cobrança indevida de um pay-per-view, no valor de quinze reais. Telefonei para reclamar. Informei à atendente que não havia solicitado nenhum pay-per-view e pedi a devolução do dinheiro. No entanto, a moça afirmou que constava no sistema que eu havia, sim, feito tal assinatura e que, acrescentou, era de um canal adulto. A princípio, não entendi bem. Para mim, todos os canais da grade de programação, com exceção do Cartoon Network, do Boomerang, do Discovery Kids e da Nickelodeon, eram canais adultos. Mas aí, para a minha surpresa, ela me explicou que canal adulto era canal de... sexo.
Então garanti a ela que era impossível eu ter solicitado esse pay-per-view, porque – argumentei - na minha religião filmes de sacanagem são coisa do Demônio, e eu não queria arder eternamente no fogo do Inferno. Por 117 vezes neguei ter feito a assinatura, e, para o meu desespero, por 117 vezes a mulher reafirmou que o sistema dizia o contrário. Entre mim e o sistema, ela acreditava... no sistema. Como pode uma coisa dessas?! O sistema é infalível? Se o sistema disser que sou pedófilo, assassino serial, neonazista, botafoguense ou amigo do general Waldick – meu adorável vizinho do 505 -, então passa a ser verdade?! Senti-me novamente como um típico personagem hitchcockiano, acusado de um crime que não cometera. Como poderia provar a minha inocência se o sistema teimava em ficar contra mim?!
Depois de meia hora de caloroso debate entre mim, a adorável atendente e seu igualmente adorável supervisor - que só não me chamaram de tarado, pão-duro e mentiroso porque a conversa estava sendo gravada –, a história teve um fim. Para resumir, verificaram que a data da compra do pay-per-view era anterior à da instalação do aparelho na minha residência e me informaram que, na próxima fatura, me seriam restituídos os quinze reais.
Se fiquei feliz com a devolução do dinheiro? Claro que não! Para mim, muito mais importante do que a restituição dos quinze reais seria ter recebido um pedido de desculpas, o que não aconteceu – e, com certeza, jamais acontecerá. Por que desculpas? Pode parecer ingênuo, ridículo ou tolo, mas, quando fiz a ligação telefônica, esperava sinceramente que, mesmo sem me conhecerem, acreditassem em mim. Esqueceram-se da máxima que diz que o freguês tem sempre razão? Senti-me extremamente ofendido por acharem que eu estava mentindo, usando meu precioso tempo para tentar roubar a fortuna de quinze reais de uma grande corporação.
Mas, pensando bem, talvez eles estivessem certos. Vivemos num mundo em que mentir é a regra. Levar vantagem em tudo – a lei de Gerson - é a regra. É preciso estar o tempo todo em alerta, desconfiar de tudo e de todos, pois sempre haverá alguém querendo nos passar a perna ou nos apunhalar pelas costas. Por que afinal deveriam acreditar em mim?
Desde muito cedo, somos impiedosamente enganados. Quando crianças, nos fazem acreditar no Papai Noel, no bicho-papão, no coelhinho da Páscoa e na Fada dos Dentes, além do Papai do Céu, é claro. Logo depois, nos convencem de que existem no mundo coisas tão improváveis quanto a bondade humana, felicidade, amor eterno e democracia.
E passamos a vida inteira ouvindo as mais estapafúrdias mentiras: o Maluf nunca teve conta no exterior; o Collor era inocente; havia armas de destruição em massa no Iraque; o Holocausto nunca aconteceu; o Sport foi campeão brasileiro em 87. E todos esses mentirosos acabam invariavelmente se dando muito bem! Pois é, vivemos num mundo em que acreditar na palavra dos outros é ser otário. Pior, vivemos num mundo em que dizer a verdade é estupidez.
Se sou hipócrita? Um falso moralista, que mente igual a todo o mundo? É, talvez você tenha razão. Sabe aquela vez em que eu disse que você estava mais magra? Pode ser que eu não estivesse sendo exatamente fiel à verdade... Satisfeita agora? Mas o canal adulto - juro por Deus! - eu não assinei.
13/08/2011


segunda-feira, 8 de agosto de 2011

DA MAIS COMPLETA DESOLAÇÃO AO ÊXTASE TOTAL





Recentemente, após o falecimento do meu pai, recebi a solidariedade de vários amigos. Ouvi muitas palavras de conforto, como, por exemplo, “ele agora vai poder descansar”, “... não vai mais sofrer” e, principalmente, “... não vai mais ter que aguentar a sua mãe”. E aí, influenciado por esses argumentos e por uma frase do Woody Allen que diz que morrer é uma boa forma de reduzir as despesas, comecei a achar que partir desta para uma melhor seria um ótimo negócio.
Pensei um pouco e concluí que já tinha cumprido minha missão neste mundo. Já tinha um filho – aliás, maravilhoso – e já tinha publicado um livro – aliás, mais de um. Só faltava plantar uma árvore...
Concluí ainda que todos os momentos extraordinários da minha vida já tinham acontecido e que as emoções que eles me proporcionaram jamais se repetiriam. Vi o Mengão aplicar 6 a 0 no Botafogo – a este jogo eu fui -; assisti a Um corpo que cai, do Hitchcock, no agora extinto cine Veneza; ainda adolescente, li Dom Casmurro, de Machado de Assis; estive presente num show do Tom Jobim na praia do Arpoador; peguei o autógrafo do Woody Allen; e fui testemunha dos primeiros passos do meu filho, logo depois de completar um ano de idade, na sala de nosso apartamento.
Mas eis que acontece, na última quarta-feira, o jogo entre Santos e Flamengo, na Vila Belmiro. Aos 25 minutos do primeiro tempo, o time carioca já perdia por 3 a 0. O que podíamos esperar naquele momento? Nada além de dor, desespero e humilhação. Mas, como a toda a humanidade já sabe e comenta, de forma heroica viramos o jogo e vencemos por 5 a 4, com uma atuação espetacular do Ronaldinho. Na hora do quinto gol, quase meia-noite, abri a janela e gritei tanto que devo ter acordado o general Waldick, meu adorável vizinho do 505. Espero que sim. (Não sei por que time ele torce, mas, garanto, Flamengo ele não é.)
Como explicar o que senti naquela noite inesquecível? Tenho que recorrer ao Bruxo do Cosme Velho. Em Brás Cubas, Machado nos mostra como descalçar botas apertadas é um caminho infalível para a felicidade. Pois é, a euforia rubro-negra não teria sido tão gigantesca se o sofrimento prévio não tivesse sido tão descomunal. Eu não teria ficado tão feliz se não estivesse tão triste antes.
E eu, que acreditava que não poderia mais viver momentos tão extraordinários, descobri que estava enganado. Quando terminou o jogo, resolvi fazer o que sempre fazia após as vitórias do Mengão: telefonei para o meu pai para dizer simplesmente “saudações rubro-negras”. Eu sabia que ele não estava mais lá para atender, mas... ser Flamengo é acreditar no impossível!


29/07/2011

CULTOR DA LÍNGUA



CULTOR DA LÍNGUA[1]
Comumente as pessoas se sentem desconfortáveis quando, mesmo em situações sociais, estão perto de profissionais, como eu, da área psi, isto é, psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, psicoterapeutas ou piscicultores. Elas ficam com medo de serem “analisadas”. Como “de perto ninguém é normal” - já dizia Caetano -, elas temem que possamos descobrir suas neuroses, maluquices ou até seus mais íntimos segredos.  Mas fiquem tranquilos, pois não temos o poder da adivinhação e não ficamos “analisando” ninguém de graça. ‘Tá bom, confesso que faço isso um pouquinho. Afinal, temos que nos proteger da loucura alheia, nem um pouco escassa neste mundo. No entanto, o que mais incomoda as pessoas no meu comportamento é outra coisa.
O que realmente não suportam em mim é a mania que tenho de corrigir o português dos outros. Procuro e aponto erros em literalmente tudo que falam ou escrevem para mim. Nem o que postam no Facebook escapa do meu crivo. Não perdoo sequer as mensagens de texto de celular.
Para início de conversa, tenho uma especial implicância com pleonasmos. As pessoas adoram subir para cima, descer para baixo, entrar para dentro, sair para fora, acrescentar algo a mais, encarar de frente, conviver junto, dar outra alternativa e contar fatos reais - e repetem tudo isso novamente, como já faziam há muito tempo atrás. Como isso me irrita! Extrapola o meu teto máximo de paciência! Por que essas pessoas – para usar outro pleonasmo, este, porém, aceito pelos dicionários – não se suicidam?!
E quando falam, por exemplo, “pediram para eu vim aqui”? Não dá vontade de matar o cidadão?! Ou pedir para ele ir para aquele lugar?! E quando dizem “não sei onde está o meu óculos”? Por que não vão procurá-los naquele lugar?! E o gerundismo? Até quando vamos estar aguentando isso?!
Sei que as pessoas não gostam que eu lhes corrija o português, porém não consigo me controlar. Tento resistir, pois essa minha conduta só me traz problemas, mas, como disse o escorpião para o sapo na fábula, é a minha natureza. Meus últimos três divórcios foram por causa disso, e todas as ex-esposas alegaram crueldade mental da minha parte. Numa carta de amor que recebi na semana passada, consegui encontrar 117 erros de português. Solicitamente, enviei as 117 correções para a minha amada, que - ingrata que só ela - deixou de me amar naquele mesmo dia. Todos os meus amigos se afastaram de mim. Nas raras festas para as quais ainda me convidam, todos se calam quando me aproximo. Até meu cachorro parou de latir, com medo de que eu reclamasse que ele estava latindo errado.
Agora que o Ministério da Educação acaba de aprovar um livro que afirma que é preconceito condenar frases como “nós pega o peixe” – aqui voltando à piscicultura -, descobri que quem está errado... sou eu.

18/07/2011




[1] O título foi roubado de uma expressão que ouvi do grande prof. Miguel Chalub, referindo-se, com grande justiça, a si próprio.

O QUE OS OLHOS NÃO VEEM...





Confesso que ando um pouco cansado da psiquiatria e pensando em mudar de profissão. Estou há exatos 25 anos nessa área e ainda não consegui curar ninguém. Quem sabe eu me torne um escritor? Se é para morrer de fome, melhor que seja como um artista. Seria muito mais romântico. Não precisar mais publicar artigos científicos, atualizar meu currículo Lattes[1] ou atender telefonemas de pacientes chatos, e só me preocupar em escrever as bobagens que me viessem à cabeça – mesmo que ninguém pagasse por elas. Seria o Paraíso!
Mas, enquanto a covardia continuar vencendo a ousadia, vou ficando por aqui. De qualquer forma, é melhor ser psiquiatra do que psiquiátrico. Hoje, porém, me senti como um paciente psiquiátrico. Foi o seguinte. Tive que me submeter a um exame de ressonância magnética. Estava perfeitamente tranquilo até o momento em que entrei no tubo e não segui a instrução de fechar os olhos. Deu-me de imediato um ataque de claustrofobia, achei que não iria conseguir respirar e, como a maioria faz no treinamento do BOPE, pedi para sair. Que mico! Depois de retirado de lá, fui logo dando explicações à técnica que operava o equipamento: que eu era psiquiatra, que isso só ocorria com os pacientes e que nunca tinha acontecido comigo – pois é, todo homem um dia acaba tendo que dar essa explicação para uma mulher, em geral quando a dificuldade é em entrar em outro tipo de tubo.
O que também ocasionou o meu princípio de ataque de pânico foi saber que teria que ficar vinte minutos lá dentro. Vinte minutos?! Eu teria que ficar esse tempo todo pensando na minha própria vida?! Mas que tortura! Não poderiam colocar um monitor de TV para eu poder desligar o meu cérebro e não lembrar minhas próprias desgraças?!
Segunda tentativa e, dessa vez, tudo correu bem. Não abri os olhos e usei como estratégia só pensar em coisas boas: revivi em minha mente o gol do Nunes na final do Brasileiro de 1980 – neste jogo, sim, eu estava no Maracanã -, lembrei-me da beleza da Grace Kelly em Janela Indiscreta, do Hitchcock e imaginei como seria o funeral do general Waldick, meu adorável vizinho do 505. Terminado o exame, para recuperar a pose, simulei uma reclamação: “Poxa, já acabou?! Não dá para ficar mais um pouquinho?”.
Moral da história: o que os olhos não veem o coração não sente. Se a economia do país vai bem, por que devemos nos preocupar com a corrupção nos altos escalões? Se a sua parceira não tem mais aquele corpão – ou nunca o teve -, apague a luz do quarto e fantasie que você está com a Scarlett Johansson. Se o homem é o lobo do homem, o mundo é cruel e todos vamos envelhecer e morrer um dia, melhor assistir às novelas da TV e ler livros de autoajuda, enquanto esperamos pela vida eterna, ao lado dos anjinhos, lá no Céu. Pois é, a ilusão é sempre melhor que a realidade. E, como o ministério da saúde adverte – ou deveria fazê-lo -, a realidade faz mal à saúde. Feche os olhos e... seja feliz.

14/06/2011




[1] Base de dados de currículos, instituições e grupos de pesquisa das áreas de ciência e tecnologia.



REJEIÇÃO





Ocupada demais? Sem tempo para nada? Muito grata pelo convite, mas infelizmente não pode? ‘Tá bom, já entendi, você não gostou de mim. Mas que mania irritante que as pessoas têm de serem tão educadas e não falarem o que realmente pensam! Se você fosse sincera, Aurora, teria dito algo assim: “Sair com você?! Que absurdo! De onde você tirou essa ridícula ideia de que alguém como eu sairia com alguém como você?! Se enxerga!”
Mas não fiquei triste. Nem um pouco. Depois de 117 rejeições este ano – e ainda estamos em junho -, a gente se acostuma. Além disso, vou passar o dia dos namorados com a pessoa que mais amo no mundo e que nunca me abandona, ou seja, eu mesmo. Tampouco senti raiva. A carta-bomba, juro, não era para você. Não sou, de maneira alguma, uma pessoa violenta. O que aconteceu foi que troquei, por engano, os endereços, e o general Waldick, meu adorável vizinho do 505, foi quem acabou recebendo as flores e o cartão com o poema erótico. Freud explica... mas talvez Alzheimer explique melhor ainda. Devo acrescentar que, depois de quinze anos de análise, aprendi a lidar muito bem com a rejeição - desde que, é claro, o rejeitado não seja eu.
Pensando bem, foi até bom; afinal, não combinamos em nada. Você acha o Woody Allen um chato depressivo e nunca viu Um corpo que cai, do Hitchcock. Adorou Marimbondos de fogo, do José Sarney. Acha Nelson Rodrigues um tarado sem-vergonha e não consegue ler Dom Casmurro, pois invariavelmente cai no sono. Nunca ouviu falar no Ruy Castro. Detesta Bossa Nova e pensa que Antônio Carlos Jobim é só o nome do aeroporto. Acredita em Deus, anjo da guarda, horóscopo e Lacan. E, pior do que tudo, não é Flamengo. Não tinha mesmo como dar certo!
Pois é, as uvas estavam verdes – e seus lindos olhos também. Mas você é tão bonita que quis acreditar que os opostos se atraem – da mesma forma que finjo acreditar que é dos carecas que elas gostam mais.

08/06/2011

VICE DE NOVO!




Meus amigos, neste último domingo, estive no Engenhão para ver o Flamengo ser, mais uma vez, campeão carioca. Para ser exato, viajei até o Engenhão, pois o estádio fica do outro lado do mundo! Nelson Rodrigues dizia que sentia “uma infinita nostalgia” do Brasil quando passava do Méier. Só não foi este o meu sentimento porque a Nação Rubro-negra estava lá em peso; e Brasil, por definição, é onde a torcida do Flamengo está.
Mais uma final contra o Vasco - nosso eterno vice -, portanto, com desfecho mais do que previsível. Mas eu não poderia deixar de ir a esse jogo, em função de uma grande frustração pessoal minha. Já explico. Woody Allen disse certa vez que só tinha uma frustração na vida: a de não ser outra pessoa. Compartilho dessa frustração, mas, no meu caso, não é a única. Tenho pelo menos mais duas: não ser o Woody e não ter visto in loco dois gols inesquecíveis do Mengão em finais contra os cruzmaltinos. E não me refiro ao gol do argentino Valido, em 28 de outubro de 1944, no estádio da Gávea, a quatro minutos do apito final, dando ao Flamengo o primeiro dos seus – por enquanto - cinco tricampeonatos. Nessa época, acreditem, eu nem tinha nascido. Aliás, meus pais ainda eram crianças e sequer se conheciam – portanto ainda não tinham começado a brigar. Não, refiro-me aos gols do Rondinelli, em 1978, e do Petkovic, em 2001. Eu jamais me perdoaria se novamente deixasse de testemunhar gols antológicos como estes. E a gente nunca sabe quando eles vão acontecer.
 Em 1978, eu tinha 13 anos e fui com meu pai ao Maracanã assistir à final do campeonato carioca. Ficamos sentados nas cadeiras azuis, bem atrás da meta defendida pelo goleiro do Vasco no segundo tempo. Foi ali, bem pertinho de onde estávamos, que saiu o gol decisivo, marcado de cabeça pelo Deus da Raça, a três minutos do fim do jogo. Perfeito, não? Não. Teria sido perfeito se ainda estivéssemos lá. Porém meu pai, preocupado com o transporte para voltarmos para casa, quis sair um pouco antes do término da partida, um pouco antes do momento do gol. Assim, eu, que até então nunca tinha visto o Flamengo ser campeão, deixei de ver o gol histórico do Rondinelli. Bom, já perdoei meu pai e, desde então, vi e revi as imagens do gol - na TV, em videocassete ou DVD - mais de um milhão de vezes. Mas ficou uma enorme e irreparável frustração...
Como eu queria ter estado no Maracanã na final de 2001, na qual o Flamengo conquistou seu quarto tricampeonato! Mas foi pela TV que vi o gol do Pet, de falta, aos 43 minutos do segundo tempo. Apesar de estar em casa, a emoção foi forte demais! Foi tão intensa que entrei num estado de transe dissociativo e, por causa disso, até hoje não sei muito bem o que fiz. Disseram que, eufórico, saí à rua completamente nu e tentava abraçar todos os que passavam. Mas, sinceramente, não me lembro de nada disso. Não, pelado não fiquei. Impossível. Pelo menos não da cintura para cima, pois, naquele momento, jamais tiraria o Manto Sagrado!


04/05/2011

MODÉSTIA À PARTE





Caros amigos,
Gostaria de agradecer a vocês as felicitações que me enviaram pelo meu aniversário, na semana passada, quando completei 117 anos. De fato, não é qualquer um que chega a essa idade. Mas, como vocês sabem, não sou qualquer um.
Aproveito para dizer que já começo a pensar em me aposentar. Acho que mereço algum descanso, depois da enorme contribuição que dei à humanidade. Não nego que tive algum reconhecimento. Ter sido eleito para a Academia Brasileira de Letras e recebido os prêmios Nobel de literatura e de medicina, o Oscar e a Bola de Ouro da FIFA - além do Estandarte de Ouro - são provas de que me deram algum valor. Contudo, para ser sincero, acho que eu merecia bem mais do que isso.
Minha obra literária começou bem cedo, quando eu ainda cursava o ginásio. A professora mandou que lêssemos Dom Casmurro, de Machado de Assis, e fizéssemos uma redação discutindo se Capitu tinha ou não traído Bentinho. No texto, argumentei que essa questão não tinha a menor importância e que a graça do romance estava justamente na dúvida quanto à inocência ou culpa da personagem dos “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Esse meu trabalho é hoje considerado um dos mais importantes ensaios da nossa literatura e, por si só, abriu-me as portas da Academia Brasileira de Letras.
Na ABL, é um enorme prazer tomar chá com os outros imortais. Especialmente com o José Sarney, autor do maravilhoso Marimbondos de fogo e um dos nossos maiores escritores – acima dele só Deus, Machado de Assis e eu, não necessariamente nessa ordem. Sarney, este sim, é um imortal: saiu da presidência da República deixando uma inflação de mais de 80% ao mês e está cada vez mais vivo na política brasileira.
O meu maior best seller foi O Antifacebook, baseado num blog de crônicas que eu escrevia quando era jovem. O livro fez tanto sucesso que foi adaptado para o cinema por Hollywood. Chamaram-me para escrever o roteiro do filme, o que me valeu o prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas naquele ano. Como o livro – e o filme – era baseado na minha vida, o lógico seria que o ator que viesse a interpretar o meu papel fosse fisicamente parecido comigo. Assim, sugeri o nome do Brad Pitt, mas – até hoje não sei o porquê – o produtores preferiram o Woody Allen.
Minha pesquisa na medicina abordou a obra de Sigmund Freud. Por meio de um artigo publicado na Science, comprovei que o pai da psicanálise estava certo. Anos mais tarde, revi meu ponto de vista e, na Nature, demonstrei que ele estava errado. Mais recentemente, na Neuro-psychoanalysis, voltei a apoiar as ideias de Freud. Agora, já com a medalha com a efígie de Alfred Nobel no peito, posso confessar que estou novamente em dúvida sobre essa questão. Espero que não me peçam para devolver a medalha, muito menos os 10 milhões de coroas suecas.
Nem todo o mundo sabe, mas antes de iniciar minha carreira na medicina, fui um grande ponta-direita do Flamengo – numa época em que ainda existiam pontas no futebol. Para calar os que criticaram a minha escolha como o melhor jogador do mundo, vou fazer uma importante revelação, algo que a minha extraordinária modéstia sempre me fez esconder. Há pouco tempo, ganhei de presente de minha aluna Patrícia um exemplar do livro Zico conta a sua história, com um autógrafo do Galinho e uma dedicatória para mim. Ele escreve assim: “Ao professor Elie”. Viram? Ao professor! Agora vocês sabem quem o ensinou a jogar bola!
Mas a minha vida não se limitou ao trabalho. De fato, a minha vida amorosa também sempre foi bastante rica. Parei de contar o número de mulheres que tive quando chegou a 117 – e nessa época eu nem era mundialmente famoso ainda. Para satisfazer um pouco a curiosidade de vocês, posso dizer que são verdadeiros os rumores publicados na imprensa de que eu estaria agora namorando, ao mesmo tempo, a Penélope Cruz e a Scarlett Johansson – além da vizinha cujo quarto dá de frente para a janela do meu apartamento.

05/03/2011



MATRICÍDIO





Quem diria que eu terminaria meus dias aqui, no corredor da morte, esperando minha execução na cadeira elétrica? Que ironia! Logo eu, que, como psiquiatra, defendia o uso do eletrochoque para tratar tudo, até unha encravada. Sinto-me agora como um típico personagem hitchcockiano, acusado - e condenado - por um crime que não cometi. Como eu poderia ter matado a minha doce e querida mãezinha?! Justamente a pessoa que eu mais amava no mundo!
Eu poderia passar horas e horas falando sobre as suas inúmeras qualidades e sobre a saudade que sinto dela. Como ela gostava de mim! Como ficou feliz quando nasci! Ela me contava que, naquele momento, olhou para mim e, cheia de orgulho, disse: “é a minha cara!”. E, em seguida, completou: “... feio como eu”.  Que satisfação me dava ouvir essa história, que ela adorava repetir!
Na minha infância, muito atenciosa, ela estava sempre preocupada com a minha educação, constantemente tentando corrigir meu comportamento. Se eu fazia alguma coisa, estava errado; se fazia o contrário, também estava errado; e, se não fazia nada, mais errado ainda.
Eu admirava muito a sua inteligência e capacidade de comunicação. De fato, ela não parava de falar. Se faziam uma pergunta ao meu pai, ela respondia; se faziam uma pergunta a mim, ela respondia; e, se perguntavam algo a ela – acreditem -, ela respondia também – embora muitas vezes sua resposta não tivesse nada a ver com a pergunta. Vez por outra, ela comentava que eu e meu pai éramos muito calados. Mas por que iríamos dizer algo se tínhamos a oportunidade de ouvir seus maravilhosos e inesquecíveis comentários?! Seus maravilhosos e inesquecíveis comentários sobre... sobre... Essas lembranças me emocionam tanto que não consigo lembrar agora sobre o que exatamente ela falava.
Ela constantemente expressava o seu amor maternal. Jamais me esquecerei da cartinha que escreveu para mim, já adulto. Ela começava dizendo que me adorava e, na sequência, listava 117 graves defeitos que eu tinha e precisava corrigir. Guardo até hoje essa carta comigo e, sempre que posso, a releio para melhorar a minha autoestima.
Embora ela fosse uma pessoa adorável, é verdade que era um pouco “nervosa”. De vez em quando elevava um pouco a voz em conversas serenas com o meu pai – acho que sobre a decoração da casa ou sobre os filmes do Bergman -, e a polícia era chamada pelos vizinhos. Não posso negar que ela teve desentendimentos sérios com algumas poucas pessoas: além do seu marido, seu irmão, sua sobrinha, todos os vizinhos do prédio e metade da torcida do Flamengo. Preocupado com o seu “temperamento forte”, pedi a quatro colegas meus que a atendessem. Um largou a psiquiatria, outro cometeu suicídio e os outros dois não falam mais comigo. O que largou a psiquiatria tornou-se padre e, hoje em dia, pratica o exorcismo.
O esbarrão que dei nela, justamente no momento em que o trem do metrô estava para passar, foi, sem dúvida alguma, acidental. Como o júri pôde acreditar nas imagens das câmeras de segurança?! Como disse Nelson Rodrigues – numa antiga mesa-redonda sobre futebol na TV -, o videotape é burro. A propósito, os meus 117 colegas de cela aproveitam para declarar que são inocentes também.

24/02/2011


O ANTIFACEBOOK




A recente notícia de que o Facebook foi avaliado em 50 bilhões de dólares inspirou-me uma nova e revolucionária ideia. Mas fique tranquilo, caro leitor. Sei que no passado tive algumas ideias um pouco extravagantes, como aquela de fundar uma religião, na qual eu seria Deus. Porém não tenho dúvidas de que tudo vai dar certo agora. Vou criar uma rede social na internet que vai competir com o Facebook e, em pouco tempo, desbancá-lo. Ela vai se chamar Antifacebook, pois em tudo vai ser o oposto do Facebook. Deixe-me explicar como veio essa minha extraordinária inspiração.
No passado, quando me sentia triste e sozinho, eu entrava repetidamente no Facebook para, de alguma forma, aplacar minha solidão. Lá, via nos álbuns de fotos dos meus amigos imagens de viagens fantásticas à Europa, passeios em praias paradisíacas do Nordeste, festas dionisíacas, além de abraços e beijos cheios de amor e volúpia. Todos invariavelmente sorrindo. Aí eu ficava mais deprimido ainda! “Por que a minha vida não é assim?”, me perguntava. Já é duro nos sentirmos infelizes, mas, diante da felicidade dos outros, nossa dor se torna ainda mais profunda.
Num belo dia, de repente, não mais que de repente, tive uma súbita revelação. Pensei: “Não é possível que todos os meus amigos, sem exceção, sejam assim tão felizes. Não acredito que haja no mundo tanta gente alegre ao mesmo tempo. Mesmo que todos tomassem diariamente um coquetel de medicamentos contendo Prozac®, Ritalina®, Rivotril® e Viagra®, não poderia haver tanta felicidade coletiva. Nem mesmo se o Flamengo fosse campeão mundial todo santo dia!” Aí veio a minha grande sacada. Compreendi que as pessoas, no Facebook, só mostram os seus melhores momentos, como num compacto de uma partida de futebol na TV. O que é chato, sem graça, vergonhoso ou triste fica de fora das fotografias.
Como então vai ser o meu Antifacebook? Nele vamos ver a vida como ela é, sem disfarces, sem maquiagem. Por exemplo, digamos que morra a avó de uma amiga minha. Aí ela criaria o álbum O funeral da vovó. Nele haveria imagens da defunta em close dentro do caixão, das coroas de flores, da família inteira da velhota chorando copiosamente. E se um amigo descobrisse que foi traído pela esposa e decidisse se matar? O álbum se chamaria Minha tentativa de suicídio. Teríamos fotos dele cortando os punhos, do tapete da sala todo ensanguentado, do motorista louco da ambulância, do hospital público caindo aos pedaços e ainda do médico - com cara de sono, pau da vida por ter sido acordado no meio da noite para dar pontos naquele desgraçado. Meu amigo poderia também fazer outro álbum, Minha mulher e o amante, recheado de fotos apimentadas tiradas no motel.
Como tenho tanta certeza do sucesso do Antifacebook? É elementar, meu caro leitor. Vou ficar bilionário porque, no mundo real, tristeza não tem fim, felicidade sim. Pode me chamar de pessimista, mas, para mim, alegria é exceção neste planeta. As pessoas reais, infelizes que são na maior parte do tempo, vão acessar o meu Antifacebook e, vendo a infelicidade dos outros, vão pensar: “Nossa, que sofrimento! Até que a minha vida não é tão ruim assim”. Vão ficar viciadas na nova rede social! Nada como a desgraça alheia para nos alegrar...
Se vou me tornar uma pessoa feliz quando for bilionário? Claro que não! Você não presta atenção no que eu digo?!
09/01/2011

ALFRED HITCHCOCK, O MESTRE DA CULPA





Meu grande ídolo é o Woody Allen, mas, como cineasta, considero o Hitchcock o maior de todos os tempos. Vários dos meus filmes favoritos são dele: Um corpo que cai, Janela indiscreta, Psicose, Frenesi, Os pássaros, Intriga internacional, A dama oculta, entre outros. Aliás, Um corpo que cai é para mim o melhor filme da História do cinema - mas isto é assunto para uma próxima oportunidade.
O velho Hitch ficou conhecido como o mestre do suspense. Sem dúvida nenhuma, a maioria dos seus filmes, especialmente os melhores, pertence a esse gênero, que ele dominava como ninguém. No entanto, a tese que vou aqui defender é a de que o tema essencial de sua obra é a culpa. Assim, alternativamente, ele poderia ser chamado de o mestre da culpa.
Qual é a trama típica de seus filmes? É cometido um assassinato e um indivíduo é injustamente acusado de ser o autor do crime. O falso culpado, então, tenta encontrar o verdadeiro criminoso, ao mesmo tempo em que é perseguido pela polícia. O final quase sempre é feliz: o protagonista é inocentado, e o assassino morre ou vai para a cadeia. Intriga internacional talvez seja o melhor exemplo desse modelo.
Mas a culpa não estava apenas em seus filmes, estava principalmente em sua alma - não estou me referindo à sua esposa, Alma Reville Hitchcock. Em entrevistas, Hitchcock adorava contar uma história de sua infância. Aos quatro ou cinco anos de idade, ele havia feito alguma pequena travessura e, em função disso, seu afetuoso pai o mandou a uma delegacia de polícia com um bilhete. O delegado o leu e, em seguida, trancou o jovem Hitch numa cela por alguns minutos - que devem ter parecido uma eternidade -, dizendo a ele: “Veja o que se faz com os meninos maus”. Já adulto, Hitchcock dizia que sentia muito medo de policiais e que jamais aprendera a dirigir um automóvel para não correr o risco de ser abordado por um agente da lei. Porém, na sua obra, conseguiu de certa forma se vingar: em seus filmes, a polícia é em geral incompetente e quase nunca consegue descobrir quem é o criminoso.
Embora tenha nascido na Inglaterra, Hitchcock era de uma família católica, tendo sido, inclusive, educado em uma rigorosa escola de padres jesuítas, que puniam os maus comportamentos com a palmatória. (Nada melhor do que o catolicismo para incutir o sentimento de culpa no ser humano!) Em alguns filmes, ele parecia estar querendo dar o troco também na Igreja. Um exemplo disso está em A tortura do silêncio, no qual um homem se confessa com um padre, revelando ter matado alguém. Por ironia, o padre é acusado desse crime, mas não pode entregar o verdadeiro assassino, devido ao sigilo do sacramento da confissão. Já em Trama macabra, seu último filme, um bispo é sequestrado em uma catedral no meio de uma missa que celebrava.
Acredito que os filmes do Hitchcock sempre foram tão populares porque promovem nos espectadores o alívio de suas culpas. Vou tentar explicar. A religião nos ensina que todos somos pecadores. Mal nascemos e já somos acusados do pecado original. Ela nos ensina ainda que não é necessário que a pessoa faça algo de errado para merecer punição, basta desejar ou mesmo apenas imaginar. Freud, por sua vez, nos mostrou que as regras e proibições morais são internalizadas pelo indivíduo e constituem grande parte de uma estrutura intrapsíquica que ele chamou de superego. Este está sempre monitorando e julgando nossas ações, pensamentos e desejos, mesmo os inconscientes, e, com grande frequência, nos pune – com autossabotagem, ansiedade ou, simplesmente, sentimentos de culpa. Ou seja, temos um algoz implacável dentro de nós! (É claro que muitos não possuem um superego muito rígido, ou não têm superego algum, e acabam fazendo carreira na política.)
Na trama típica dos filmes hitchcockianos, o falso culpado, embora esteja involuntariamente envolvido em uma situação extraordinária – assassinatos em série, espionagem internacional –, não tem os poderes de um super-herói, é apenas uma pessoa comum – tem emprego, família, cachorro, contas para pagar etc.  Assim, por ser tão prosaico o personagem, é fácil para o espectador se identificar com ele. A injusta perseguição de que é vítima o personagem remete o espectador às suas próprias angústias e culpas. No final, quando o verdadeiro criminoso é punido e o protagonista, inocentado, o espectador se sente desculpado, redimido, talvez até purificado.
04/12/2010