Domingos
Oliveira certa vez fez o seguinte comentário: “Um dos maiores prazeres da minha
vida é quando os jornais anunciam um novo filme de Woody Allen. Meu coração
bate, sabe que vai encontrar uma alma tão romântica quanto a minha. Não
resisto. Estou sempre na pré-estreia, que, por falar nisso, nunca está lotada
como eu sempre imagino que estará. Woody Allen não é um sucesso de bilheteria
em praticamente nenhum lugar no mundo. Sua plateia não inclui os burros. E os
inteligentes são poucos”.
Identifico-me
inteiramente com o grande cineasta e dramaturgo brasileiro, recentemente
falecido. De 1982 a 2017, Woody fez um filme por ano, eventualmente mais de um.
Assim, nesse longo período, a cada ano eu experimentava uma grande expectativa
quanto à estreia de um novo filme do cineasta nova-iorquino, da mesma forma que
uma criança espera ansiosamente a chegada do Natal, quando irá ver o Papai Noel
e ganhar presentes.
Todavia,
a regularidade das produções de Woody foi quebrada. Em função da acusação
contra Woody de ter abusado sexualmente de sua filha adotiva Dylan quando ela
tinha sete anos, os movimentos #MeToo e Time’s Up iniciaram, nos últimos anos,
nos Estados Unidos, uma campanha de perseguição contra o cineasta. Isso influenciou fortemente a mídia, que passou a condená-lo ou, no mínimo, a dizer
que a questão era polêmica. Como consequência, a Amazon decidiu não lançar “Um
dia de chuva em Nova York” e não produzir os próximos filmes de Woody, rasgando
assim o contrato que tinha com ele. Configurou-se então uma situação
completamente absurda, já que, no longínquo ano de 1992, a polícia de Connecticut,
com a colaboração de uma equipe do Hospital Yale New Haven especializada em
abusos sexuais de crianças, investigou a acusação e concluiu que Woody era
inocente. Ou seja, ele sequer foi processado criminalmente.
Diante
desse tenebroso cenário, há não muito tempo temia-se que “Um dia de chuva em
Nova York” jamais chegasse ao público e que Woody não obtivesse mais
financiamento para novos filmes. No entanto, para a felicidade geral dos fãs do
cineasta, o filme conseguiu distribuidores na Europa, na Ásia e na América
Latina, embora não nos Estados Unidos. Nas últimas semanas, a toda hora eu via
nas redes sociais postagens de pessoas de várias partes do mundo que exibiam,
com orgulho, imagens de ingressos para o filme e comentavam, nas mais diversas
línguas, sobre a sua satisfação em poder vê-lo, despertando em mim inveja e
ansiedade.
Eis
que, na última quinta-feira, dia 21 de novembro, finalmente “Um dia de chuva em
Nova York” estreou no Brasil. Foi em dezembro de 2017 que eu havia assistido ao
seu filme anterior, “Roda Gigante”. Assim, já se contavam praticamente dois
anos de uma abstinência para mim insuportável, o que me obrigou a fazer como
Domingos e ir na pré-estreia, que aconteceu na véspera. A propósito, a sessão
estava lotada.
Gostei
bastante do filme, mas reconheço que não está entre os maiores do cineasta.
Vários críticos consideraram o roteiro pouco criativo e afirmaram que Woody havia
repetido nele diversas situações e personagens de outras de suas comédias
românticas. De fato, elementos recorrentes de sua obra estão novamente
presentes em “Um dia de chuva em Nova York”: o amor por Nova York, aversão ao
campo, infidelidades amorosas, a paixão de homens de meia idade por mulheres
bem mais novas, prostitutas, a música de Irving Berlin e, especialmente,
romantismo. Aliás, como em vários outros de seus filmes, em “Um dia de chuva em
Nova York”, as cenas românticas ocorrem especialmente quando está chovendo.
Contudo,
não considero essas repetições como defeitos. Adoro rever várias vezes os
filmes de Woody, rindo das mesmas piadas, me emocionando com as mesmas cenas. Tendo
assistido a todos os seus filmes sem exceção, a minha relação pessoal com a sua
obra cinematográfica é mais com o conjunto do que com os filmes isolados. Vejo
as repetições de Woody como expressão de sua fidelidade a si próprio e a seu
público e como oportunidades para eu revivenciar prazeres antigos.
Na
quarta-feira, ao término da sessão, eu não queria sair da sala de cinema e
voltar a enfrentar o aterrorizante mundo real. Forçado a ir embora, ainda
permaneci em um estado de transição entre a fantasia e a realidade por alguns
minutos. Num primeiro momento, achei estranho não estar chovendo lá fora. Além
disso, ainda durante essa transição, me senti feliz e romântico. Então, me veio
o impulso de ir até a minha amada e declarar o meu amor, e imaginei que, se nós
dois fôssemos personagens de um filme de Woody Allen, estaria chovendo e, sob a
chuva, nos beijaríamos apaixonadamente.
(novembro de 2019)