Mente e corpo são algo único
e indivisível ou representam duas coisas diferentes? Para Woody Allen, “a mente
abarca todas as mais nobres aspirações, como poesia e filosofia, porém o corpo
é que fica com toda a diversão”. Segundo uma corrente filosófica bastante
radical, o materialismo eliminativo, só o corpo é real e a mente simplesmente
não existe. Isto até pode ser verdade, pelo menos em relação aos participantes
do Big Brother Brasil, com seus corpos esculturais e cérebros inteiramente
inabitados.
No meu caso em particular,
mente e corpo estiveram sempre muito separados e nunca se entenderam muito bem.
Para mim, meu corpo era meramente um meio de transporte, provisório, para a
minha alma. Esta concepção se formou quando eu era criança, em função de minha
educação católica, que me fez valorizar apenas a alma e desprezar o corpo. Aprendi
que eu tinha que ser um bom menino para que a minha alma, imortal, fosse para o
Céu após a morte do meu corpo, impuro.
Mais tarde, já que a Deise,
minha sedutora colega do ensino médio, não queria nada comigo, passei a
adolescência lendo Machado de Assis e Nelson Rodrigues, jogando xadrez e vendo
no cinema ou em videocassete Hitchcock, Woody Allen, Frank Capra e Truffaut. É
verdade que também jogava uma bolinha de vez em quando e sonhava em ser
ponta-direita do Flamengo. Mas eu era tão ruim no futebol que acabei indo fazer
faculdade de medicina mesmo. Afinal, por pior médico que eu viesse a me tornar,
não mataria tanta gente quanto se fosse atacante do Mengão – os corações de
milhões de torcedores não resistiriam a tantos gols feitos perdidos.
Na vida profissional,
continuei negligenciando o corpo e me dediquei à psiquiatria, a especialidade
médica que cuida das doenças da mente. E ainda fui fazer formação
psicanalítica, onde aprendi que o corpo e o cérebro são meros detalhes
inconvenientes. (Para ser justo, não era bem assim que Freud pensava. Se ele
ressuscitasse agora e visse o que fizeram tomando seu santo nome em vão, com
certeza cometeria suicídio!)
Todavia, recentemente, meu
corpo resolveu se vingar e tive que dar mais atenção a ele. Num belo dia, forte
fisgada na coluna lombar, do lado esquerdo. Este foi o laudo da ressonância
magnética: “osteófitos
marginais incipientes em L4, L5 e S1; abaulamento discal difuso em L4-L5
endentando o saco dural e as porções inferiores dos foramens neurais”.
Consultei-me com uma fisiatra, a dra. Elizabeth, que diagnosticou que
eu tinha problemas quanto à consciência corporal. Eu já sabia disso e relatei a
ela um episódio que ilustra bem essa minha dificuldade. Certa vez, eu tinha ido
ver um filme do Bergman com uma amiga. Depois da sessão, enquanto debatíamos o
profundo significado da obra, de repente ela soltou um grito: “tira a mão daí,
seu...!”. Não adiantou nada eu dizer que minha consciência corporal era igual a
zero e que eu não tinha a menor ideia de como a minha mão tinha parado ali,
justamente ali. Levei o tapa no rosto do mesmo jeito...
A fisiatra também me disse que eu não conseguia escutar o que meu corpo
dizia. Achei que ela iria indicar uma audiometria ou me encaminhar a um
otorrino, porém, em vez disso, ela recomendou Pilates e RPG.
Na primeira vez em que fui à aula de Pilates, fiquei bastante confuso.
Chegando lá, vi aparelhos que lembravam instrumentos de tortura da Inquisição,
mas também diversas bolas grandes e coloridas. Eu não sabia se iam esticar todo
o meu corpo até que eu confessasse ser um herege ou me botar para brincar.
Depois vim a descobrir que as duas coisas acontecem.
A RPG, por sua vez, até hoje é para mim um pouco estranha. No início de
cada sessão, fico ali deitado e, Clarissa, minha dedicada fisioterapeuta, puxa
daqui e empurra de lá, tentando colocar minhas vértebras de volta ao lugar
certo. Parece que estou em uma oficina de automóveis: é como se ela fosse o
lanterneiro e eu, o carro amassado. Só a pintura ela não faz...
De uns tempos para cá, além
do Pilates e da RPG, tenho feito caminhadas, voltei a nadar, parei de beber e
só como alimentos saudáveis. Desisti da Academia Brasileira de Letras e entrei
para uma academia de ginástica mesmo, onde faço Indoor Psycho, ou melhor, Indoor
Cycle. Agora, em vez de currículo Lattes, tenho currículo Pilates. Em suma,
nunca cuidei tão bem da minha saúde física. Transformei-me em outro homem e
meus hábitos se modificaram profundamente: o tempo todo ouço música sertaneja,
fui a um festival de filmes do Stallone, estou lendo um livro de autoajuda,
mandei fazer meu mapa astral e marquei uma consulta com um numerólogo. Tem até
me dado uma vontade irresistível de ver o Big Brother na TV!
Pois é, agora é a minha
mente que está se sentindo negligenciada...
12/01/2012